terça-feira, 28 de julho de 2009

Segunda: Usina Contemporânea lança olhar sobre os dramas da cidade

por: Kil Abreu
fotos: Thiago Araújo
Em “Ágora Mandrágora ou Santa Maria do Grão Agora” o Usina contemporânea de teatro comemora seus 20 anos em tom político (no que a palavra tem de essencial, a discussão sobre os caminhos da pólis) e usa o embaralhamento maquiavélico a respeito de coisas como a justiça e a relatividade entre o bem e o mal, para fazê-lo. Na peça estes valores são representados no ambiente das relações interpessoais, mas na verdade metaforizam o homem corrompido - ou uma discutível natureza incontornável deste em direção à corrupção -, no âmbito das relações entre o sujeito e o Estado.
Em que pese seus cinco séculos desde que foi escrito, o texto ganha no Brasil um palco convidativo, dadas as condições que marcaram a nossa sociabilidade desde a colonização: o amor pela encarnação instantânea de papéis que facilitem o alpinismo social e a prática – tomada não como vício, mas, valor invertido, como virtude – de apropriação da coisa pública como se fosse privada. Entretanto, se este é o plano ideológico mais geral do texto de Maquiavel, o grupo paraense elege um foco em particular, que dialoga mais de perto com a conjuntura belemense, e nele centra suas energias. A fábula, com seus jogos de aparências, é pretexto para a articulação cênica de uma crítica ácida, que segue caminhando em direção a um depoimento final marcado pelo desencanto. Lá estão as referências a personagens “típicos” da terra, tomados em tom paródico ou caricatural, pelo que têm de exemplar na negatividade. E lá está também um tema que tem lugar confortável neste desenho do corpo social corrompido e que entre os paraenses teria ganho contornos de farsa inofensiva, se não tivesse se avolumado em um drama que a cidade elegeu para si. Este tema é o da vigarice: o da falsa persona que, não vendo vantagem em se apresentar como é, cria uma máscara de ocasião, para efeito de ganho em uma situação dada.

A referência, é claro, tem endereço certo. Mas – pior para nós - tem tradição e continuidade de longa data. Basta ler algumas páginas de Sérgio Buarque de Holanda nas suas “Raízes do Brasil” para ver de que maneira herdamos dos portugueses o carinho pelos títulos, pelo emblema doutoral, que não está amparado necessariamente no lastro da labuta, do esforço e do suor. Entre outras coisas feias das quais por vezes alguns até se orgulham, está mais esta, a da titulação de empréstimo ou, no caso, a nobília inventada.
No projeto do Usina, ao contrário, há de saída uma coisa muito interessante, relacionada com este assunto. É que o elenco é composto por pelo menos três gerações de artistas, que contracenam em outro plano, oculto àquele da fábula: em perspectiva estão os mais jovens (Gilberto Andrade, Landa de Mendonça, Milton Aires, Ronalda Salgado); e os mais velhos (Astréa Lucena, Andréa Rezende, Nando Lima, Cláudio Melo, Alberto Silva, Leo Bitar) trazendo justamente uma história – então, uma verdade, uma trajetória conquistada através do trabalho - que dá chão aos primeiros e que é resposta àquela idéia da falsidade, ou do travestimento do sujeito através da falsa honraria.
Talvez isso justifique um primeiro espetáculo, que não detalharei aqui porque é indescritível, mas que ocorreu quando, na Segunda-feira, a chuva caiu sobre a praça e obrigou que a apresentação fosse transferida para o teatro Waldemar Henrique. Não fosse a solidariedade verdadeira, baseada na parceria artística e no espírito de coletivo, certamente a platéia não teria esperado por horas pelo rearranjo no espaço novo para, enfim, ouvir as coisas importantes que se tinha a dizer. E a platéia não saiu. É que ali se instalava acidentalmente, na paralela, uma Experiência social incomum para a época, em que havia um esforço de respeito pelo público, que se sentia prestigiado, e pelo próprio trabalho, fruto de um investimento criativo que não poderia ser abortado por causa da chuva. A montagem, então, teria que ser vista nestas circunstâncias. Mas faremos aqui uma tentativa de mediação entre esta apresentação, de exceção, e o que o espetáculo apontaria nas suas condições ideais.
Dele o primeiro sentido que salta é, felizmente, o da experimentação e do risco. Certamente o trabalho está entre os mais experimentais do Festival, dedicado ao laboratório livre com a forma e com a expressão. E este caráter laboratorial tem pelo menos três eixos fortes: o próprio projeto do encenador, a cenografia e toda a parte musical, que inclui elementos de trilha sonora e de sonoplastia. Há sempre, cena após cena, uma vontade subliminar que rejeita as soluções que seriam as mais “acertadas” caso se procurasse oferecer uma leitura direcionada. Ainda que o espetáculo tenha um ideário em jogo, as construções cênicas buscam a comunicação através do estranhamento, seja no aspecto do acúmulo de fragmentos de encenação que propositalmente não têm unidade de estilo (como se o encenador mudasse as regras do jogo a cada passagem); seja no lúdico “monta-desmonta” da cenografia, em que os objetos vão sendo transformados continuamente em suas funções simbólicas; seja no ecletismo do plano sonoro, que por vezes “tematiza” de maneira referencial as cenas e às vezes se empenha em criar dissonâncias. O projeto, então, encontra na sua própria forma a resposta mais interessante para aquele problema das aparências, como se o espetáculo se recusasse a caber na máscara, a mimetizar ao pé da letra a realidade criticada. Na sua metamorfose permanente como que oferece uma volta “à altura” e em mesma moeda ao objeto que discute.
Evidentemente não se pode esperar de um plano artístico deste gênero que ele se conforme no acerto. E há, então, espaços para serem visitados. Os mais claros, parece, são a dinâmica das cenas e o trabalho com o elenco. No primeiro caso, pode-se dizer que trata-se de uma obra exigente quanto ao “azeitamento” da sua estrutura. O andamento veloz e a quantidade de mudanças nos diz que só o exercício permanente – encenar e encenar - vai gerar, na sintonia fina, as qualidades que vêm dele e que estão em processo.

Quanto ao elenco, sem que se precise entrar no mérito do talento, porque não há débito nesta área, há algo frouxo não quanto à concepção da montagem, em si, mas quanto a uma dialética que precisaria se instalar nela, talvez a partir das atuações. É que para uma proposta tão radical de investigação provavelmente seria necessário que aquele artifício inicial da fragmentação, que está em todos os lugares do espetáculo, tivesse um ponto de apoio que unifica, que dá chão comum ao diverso. Pelo que se pode intuir, este eixo em que se poderia buscar a unidade espetacular está no ator. Mas as composições atorais, postas na mesma perspectiva dos outros elementos, aparecem ampliadas em excesso, desde passagens de um quase expressionismo gestual até as bordas dos tipos de Comédia Dellarte. Por isso , por exemplo, uma performance que no recorte tem grande qualidade expressiva e empatia, como a de Cláudio Melo, funciona plenamente quando vista em situações que tendem mais ao improviso isolado, ao desempenho pessoal, mas não tem o mesmo rendimento quando posto em relação. É que o jogo, a contracenação em chaves de composição tão diferentes, exige esta também um tipo de sintonia nova, que não está dada, é também motivo de construção. Tarefa para os atores e para o encenador, na sua função de diretor de elenco.
Voltando à discussão que o espetáculo propõe, a Mandrágora do Usina, ao tematizar o drama da Ágora, e ao finalizar o espetáculo com uma imagem que eu chamei “setentista” pelo que ela tem de belamente deprimida, sinaliza uma falta. Como nos ensina a psicanalista Maria Rita Kehl em sua leitura muito produtiva da depressão na época contemporânea, o deprimido é antes de tudo um inadaptado, não um alienado. A depressão é uma forma de recusa do sujeito que, insatisfeito, não aceita o mundo porque não cabe nele. Por isso aquela imagem, em uma peça que discute a situação da cidade, é um bonito achado, pela via de um sentimento que nos parece difuso, mas que é geral e que ali encontrou um simbolismo forte. Resta, como se apontou no encontro final do Festival, dar o salto de qualidade para fazer desta imagem algo produtivo também no campo extra-artístico. Se as condições subjetivas estão tão evidentes a ponto de serem representadas através do trabalho artístico, resta, para ficar no jargão psicanalítico, sair da queixa e criar as situações objetivas de “poder” que ela dispara.











Um comentário:

  1. Espetáculo maravilhoso! E a crítica tb foi ao ponto: reconhece as imensas qualidades desse tour de force do Alberto e sugere o sempre possível aprefeiçoamento.

    Parabéns ao elenco, à direção e à crítica.

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