segunda-feira, 6 de julho de 2009

Sábado no Teatro Cuíra


Quatro versus cadáver – Entre a paródia e o pastiche
Por Kil Abreu
Fotos: Thiago Araújo

A expectativa era grande quanto a Quatro versus cadáver. É que dos espetáculos pautados provavelmente este seria o que mais se aproximaria da “peça de autor” (e aqui temos quatro!), já que a maior parte das montagens constrói suas dramaturgias de maneira mais compartilhada ou mais centrada nos recursos da própria encenação.

O plano artístico de Saulo Sisnando é primo de um teatro localizado no caldo de uma cultura jovem, em que um imaginário marcadamente urbano e cosmopolita vai buscar suas fontes: mídias diversas, como a web, o vídeo, o cinema, a TV, os quadrinhos e outras variantes e linguagens emergentes do pop e da cultura de massas. Nessa linha há espetáculos muito curiosos, como os da Cia. do teatro Rock, de São Paulo (Lado B, Na cama com Tarantino) e a Vigor Mortis, de Curitiba (Morgue Story, HitchcockBlonde). São trabalhos que tomam aquelas referências às vezes isoladamente e às vezes misturadas em verdadeiros “patchworks” formais, painéis em que interessa menos a unidade que a idéia de colagem, de justaposição.

No espetáculo paraense elas se avizinham do cinema e da literatura. Do cinema noir, nos textos de Edyr Augusto e Rodrigo Barata, e das tramas de mistério, nos de Carlos Correia Santos e do próprio Saulo Sisnando. Tendo como ponto de partida um mesmo mote, o do assassinato de um homem (em São Francisco e na Europa) e do clássico jogo de motivos e desconfiança entre os outros personagens, a peça vai variar o tema em quatro movimentos e em chave cômica.
Diremos que nesta área, a das alusões, salvo engano há outra, que é determinante na montagem, além das anunciadas pelo grupo, e como que orienta as demais: a televisão. Toda a estratégia formal se alimenta do repertório televisivo, sobretudo dos programas de humor - não aqueles de quadros humorísticos, mas os que se dedicam a uma dramaturgia redonda, continuada, no estilo “Toma lá, dá cá”. A marcação das cenas, que privilegia os planos frontais, reforça este diálogo.


Visto isso não se pode pedir da montagem o que ela não é, e o seu limite é o da peça de entretenimento, uma das funções legítimas do teatro. Então na prova do palco o êxito é mais que razoável. Mobiliza-se em cheio a platéia na estratégia de aproximação daquelas matrizes em que os autores se inspiraram, colecionando os clichês de gênero e os expondo humoristicamente um após o outro.

Na paralela há o fato relevante de que apesar dos quatro diferentes movimentos não é possível identificar com muita clareza as marcas individuais, as características próprias de cada um deles. Não deixa de ser decepcionante, mas, creio, parcialmente compreensível: é que o procedimento paródico que está na vocação do projeto naturalmente cria alguma tendência a uniformizar a escritura. Mais que a expressão pessoal de cada autor está em jogo o “comentário” que eles devem fazer sobre suas fontes. Ou, talvez, a marca autoral tenha ficado em um plano relativamente difícil de ser alcançado devido às soluções enfáticas usadas na encenação, que mantém uma espécie de “mão pesada” sobre a dramaturgia.
De um ou outro modo, se por um lado não há muito o que discutir quanto a estas escolhas, creio que ainda há espaço para fazer um apontamento crítico procurando sentidos mais profundos, que oferecem ao menos uma leitura possível das cenas, vistas sob outro ângulo.


O imaginário da peça, urdido em uma série de situações propositalmente inverossímeis (daí parte de sua graça), é quase um mundo novo, suspenso acima do tempo histórico. É lugar onde se experimenta uma visão alegre e longínqua da realidade. Este relativismo, por ingênuo que pareça, acaba por revelar acidentalmente aquela idéia, tão impregnada em nós como um valor, sobre o diverso, o plural. No espetáculo ela aparece traduzida na forma de um vale-tudo estético, em um sem número de soluções cênicas que insinuam a paródia e alcançam o pastiche, pela via do absurdo e do grotesco. É como se de alguma maneira esse jogo com o imponderável, com uma pluralidade e uma diversidade imponderáveis, nos dissesse que há uma compensação prazerosa em uma época carente de utopia: libertos de uma abordagem minimamente crítica do real nos é permitido acreditar em
qualquer coisa, ou “estar de qualquer lado”. A tese é: tanto faz. A questão é que no limite este estar de qualquer lado também pode significar o desejo de não estar em lugar nenhum, ainda que a boa dialética nos diga que isto é uma operação ideológica, esta sim, impossível.


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