quinta-feira, 2 de julho de 2009

Abertura promissora: a ética exemplar do chamado comunitário

POR: KIL ABREU
fotos: Thiago Araújo

Breve intróito
Do alto do hotel dá para avistar as mangueiras, enfileiradas, em um ângulo inusual e muito bonito. Em cima o sol é escaldante, mas lá embaixo as copas oferecem um “refresco” para quem passa, em largos pedaços sombreados, aqui e ali, na calçada.
Fiquei com esta imagem na hora de escrever o primeiro texto a mim encomendado pelo Nando Lima e pela Ester, que organizam este segundo movimento do “Territórios de teatro”. Eu, um paraense desgarrado e ávido por notícias sobre velhos parceiros e parceiras e a cena local, fiquei por uns minutos vivendo a sensação que a imagem encarnava: um céu aberto à força convulsiva de idéias, saudade de amigos idos e muitas expectativas; e, lá embaixo, a sombra – fresca, mas sempre sombra – do ainda não visto e do ainda não dito. Espero, francamente, ser capaz de trazer à luz plena, sob um ponto de vista que será sempre, espero , discutível, as questões que nos ajudem a pensar as coisas do teatro e alguma coisa sobre a vida. Pois que, sim, como diz Peter Brook, o teatro é sempre a vida. Sob mil artifícios e disfarces, é sempre sobre nós mesmos que estamos falando, ainda que, às vezes, pelos avessos.
Então, a primeira coisa é que resolvi aceitar a sugestão do Nando e escrever estes textos pensando menos em críticas “cerradas” e mais na criação de possíveis contextos, no levantamento de questões, na procura de relações, parentescos e etc. Não sei se conseguirei – como eu gostaria, e em desobediência deliberada ao preceito acadêmico de não escrever em primeira pessoa – dar a estas “leituras” a forma mais aproximada da crônica. Vamos ver. Será o que será.


Paixão de cristo. Pelo Grupo Experimental de teatro Aldeato
Um espetáculo apresentado há 24 anos! Pensei com os meus botões: isso sim, é um épico! Imagino, com base na história de outros espetáculos enraizados na experiência comunitária – boa parte deles com a mesma vocação para temas pontuais, como os religiosos – que provavelmente trata-se de um bem cultural destes que são transmitidos de geração a geração. E com isso poderemos já ver os elencos que se renovam e sustentam certa tradição, que vai sendo mantida.
Esta idéia nos leva a três questões que, suponho, estão entre as fundamentais que o espetáculo provoca: a dos artifícios estéticos desta cena; a importância dela, em particular, para o lugar no qual foi criada e, em geral, para o teatro paraense; e, em uma visada mais simbólica e propositalmente direcionada, a sinalização de um diálogo necessário – no aspecto artístico, mas também político – com a história recente do teatro em Belém. E, neste último ponto, a montagem apenas dispara inquietações que estão fora dela.
Quanto à primeira nota, seria preciso saber se o espetáculo visto na abertura é o mesmo, ao menos em estrutura, apresentado na comunidade, em Canudos. É claro que haveria aqui uma discussão possível quanto a estes “descontextos” gerados com a representação de um trabalho tão umbilicalmente criado para um espaço determinado. Mas, sendo uma dramaturgia cujo reconhecimento é amplo, vamos pensar um pouco sobre o que parece específico a esta Paixão, tendo em vista a apresentação da Praça da República.
O que de imediato salta é o exercício de síntese desta versão, em que se enxuga o verbo, preservando, entretanto, todos os momentos angulares da narrativa, da apresentação à ressurreição, passando por todas as estações. É uma operação interessante porque curiosamente faz uma espécie de condensação do gênero (épico), que é distendido por excelência. Mas faz assumir, por outro lado, uma espécie de teatralidade quase racionalista, em que pese o sentimento dramático que pontua as cenas.
A representação, mostrada nesta base propositalmente “teatralista”, libera-se engenhosamente da necessidade dos efeitos espetaculares que outros pares (como algumas versões cinematográficas e a montagem de Nova Jerusalém) valorizam. Livre das exigências de inspiração realista, que na verdade estão mesmo na absoluta contramão da forma, a encenação se estabelece menos como mimese, no sentido da imitação, e muito mais como uma narrativa em que se procura uma exposição aberta, porém medida, do mito. Isto valoriza a coisa cênica não no que ela poderia ter de verossímil, mas no que ela tem de simbólico, de poético.


Se a análise crítica fosse cerrada e desconsiderasse a obra de seu contexto de produção e criação certamente várias questões de ordem técnica poderiam ser apontadas. Mas é que aqui se pode dizer, em ampla compensação, que o espetáculo redescobre qualidades em terreno tão raro e difícil quanto o da forma artística “acertada”. É que em última análise este lugar, o do espetáculo e seu entorno, lugar de re-apresentação e re-vivência simbólica do mito antigo, é também (e diremos: é, sobretudo) o lugar atual, efetivo, concreto, de re-união comunitária, de potencialização do mundo segundo um objeto comum e com-partilhável.
Em uma época de grande despolitização e desmobilização, de fraturas sociais incríveis e de individuação da vida, parece ser este o valor mais essencial no trabalho do grupo de Canudos. O que não é pouco e, ao contrário, é muito relevante. É uma lição de como se mobiliza a arte em direção a um propósito firme, a um sentido ético essencial. Mas não se trata aqui de entender a ética apenas como tradução dos conteúdos do espetáculo, preocupado com coisas importantes como a bondade e a justiça, valores tão fincados em campo ideológico complexo, que carrega lá, naturalmente, as suas contradições. Quando se diz que o espetáculo é exemplar no seu sentido ético é para apontar que ali é possível observar e admirar algo além destes valores que estão por assim dizer no plano imediato de leitura da obra. Trata-se de um pacto simbólico, selado através do teatro, que ultrapassa a própria didática religiosa para inventar-se como uma experiência de pertencimento social que é mais ampla. Neste sentido, sem que precisemos nos alinhar às questões de fé, trata-de de algo exemplar para o grupo e a comunidade de Canudos e provavelmente para todos os artistas que, em Belém (mas não só aqui), sofrem os efeitos do ensimesmamento.
Ainda nesta perspectiva, a imagem do Cristo crucificado, erguida por um grupo vindo da periferia da cidade, em frente a um monumento cultural historicamente problemático como o Teatro da Paz, seria forte o suficiente para mobilizar consciências adormecidas. Seria? Lembra uma outra, vinda de Heinner Muller - uma espécie de chave para todo o seu teatro: é preciso olhar para trás e tomar os nossos mortos mais combativos pelas mãos, é preciso dialogar com eles, é preciso saber o que eles têm a nos dizer e a nos emprestar.

Um comentário:

  1. "é preciso olhar para trás e tomar os nossos mortos mais combativos pelas mãos, é preciso dialogar com eles, é preciso saber o que eles têm a nos dizer e a nos emprestar."

    Excelente!

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