sábado, 4 de julho de 2009

Catolé e caraminguás – A In Bust sofistica a pesquisa dramatúrgica (e revela, a contrapelo, o vazio das políticas públicas)
Por Kil Abreu
fotos Thiago Araújo
A Companhia paraense In Bust é uma que tem lugar definido em um quadro, o de teatro de bonecos (ou com bonecos, como eles preferem) bastante rico no panorama brasileiro atual, que vem se desenvolvendo de maneira invejável nos últimos anos. Seja nas suas versões sulistas, em que a influência de imigrantes estrangeiros é muito evidente (como nos karsperletheater catarinenses, de origem alemã); seja na tradição popular do mamulengo, incentivada ou revista em novos modos na cena nordestina; seja no trabalho de grupos referenciais como a Truks e o Sobrevento (de São Paulo) ou o Giramundo (Belo Horizonte) – trata-se de uma cena em pleno e promissor movimento.

O dito lugar da In Bust é desenhado entre contornos que estão em diálogo com este panorama (as suas linguagens e algumas técnicas de manipulação específica), mas que buscam suas formas próprias, construídas de várias maneiras: na pesquisa e uso dos materiais regionais; na dicção especial que se apropria da nossa fala, em uma brincadeira gostosa e afirmativa com um elemento cultural importante; e, por fim, na estratégia eleita pelo grupo (ao menos nos trabalhos a que assistimos) de relação com os bonecos, em que a manipulação aparente solicita a contracenação destes com o ator, e destes entre si.

Em Catolé e Caraminguás não há dúvida que o mais interessante é o salto de qualidade na área dramatúrgica. A base em que se inspira o espetáculo, a comédia Os ciúmes do pedestre ( O terrível capitão do mato), escrita em meados do séculos XIX, não foi tomada como centro único da encenação, ou seja, não se trata de uma “versão para bonecos” da mesma. A adaptação e dramaturgia de Adriana Cruz criou um outro entorno para o texto de Martins Pena, colocando-o no lugar de canovaccio (roteiro de ações sobre o qual os atores da Comédia dellarte improvisavam) de uma outra situação, agora tomada como eixo, e que dá conta dos esforços de representação de uma família mambembe. A montagem acontece, então, à custa dos qüiproquós vivídos nas relações entre os dois planos narrativos.
A idéia, aparentemente simples, é de difícil execução porque para que os dois planos sejam mobilizados satisfatoriamente, sem embaraço de sentido entre um e outro, é preciso o domínio rigoroso dos materiais que vão à cena. Mas o grupo resolve o desafio com a tranqüilidade de quem se colocou como tarefa um salto seguro, em que estão mobilizados os elementos técnicos de manipulação já bem afinados em trabalhos anteriores e que reaparecem aqui em apoio definitivo. Então o espetáculo, apesar do passeio entre uma e outra história, se organiza com a clareza necessária para que a platéia usufrua de todos os lances com prazer.

Como ressalva, salvo engano há uma área na qual o grupo ainda precisa investir, que não compromete o resultado final do espetáculo, mas que indica uma parte da pesquisa que pede atenção. Para um projeto em que é central a relação ator/bonecos, a impressão é a de que o rendimento dos bonecos, seja no aspecto da confecção e do uso original dos materiais, seja no aspecto da manipulação, chegou a um resultado e a uma afinação excelentes, muito acima do razoável. Mas, sem prejuízo do resultado final, parece que os manipuladores, quando colocados na posição de intérpretes, permanecem reféns de um algo que em si é importante para o espetáculo, mas que precisa ser dinamizado quando vivído pelo elenco: certo tom brejeiro, macunaímico, malemolente, que se por um lado é parte indispensável do charme da cena, a ponto de podermos dizer que define quase o espírito do espetáculo, por outro é responsável por uma sensação de que a prontidão física e a disposição para um desenho gestual mais rigoroso é algo a ser experimentado. É claro que a informação cultural que a montagem representa subliminarmente (como já se disse: o tempo amazônico, sem pressa, das marés) tem a ver com isso. Mas se a obra é sempre pura manipulação e artifício, valeria a pena procurar ver como esse tempo pode encontrar, no corpo dos atores, outros andamentos e outras dinâmicas.
Olhando agora no entorno, a imagem do Casarão nos traz uma informação flagrante, alinhada ao resultado artístico sem o qual o grupo não figuraria entre aqueles grandes citados no início: é a extra-ordinária estrutura que eles conseguiram montar nos campos da pesquisa, criação, circulação e sustentação dos seus espetáculos, sobre o árido terreno das políticas locais para o teatro, se é que nós podemos chamar assim. Quanto a isso pode-se dizer que o trabalho dos paraenses, em comparação com aqueles outros, é melhor. Pois há uma diferença de proporção, no capítulo do incentivo, entre dois resultados artísticos igualmente valorosos, como este Catolé e Caraminguás e, por exemplo, um espetáculo excelente do Sobrevento, como Orlando Furioso (que recupera os pupi de vara italianos). Ressalvadas as diferenças de escala, se aqui a montagem se ergue à custa de um edital bissexto, bastante modesto em recursos e, sobretudo em função da capacidade de produção do próprio grupo, lá a Companhia paulista recebe, via Lei de Fomento, algo em torno de R$ 600 mil para uma pesquisa que pode durar até dois anos, em um programa público regular, que tem cronograma específico e não é doação de dinheiro do Estado aos artistas. É um investimento público, que exige contrapartida igualmente pública – de olho na relação do teatro com a cidade.

Esta não é uma nota lateral, é algo central quando for preciso valorar o trabalho de grupos como a In Bust, ou o Cuíra, entre outros que têm estruturas de produção mais ousadas. Ela não dispensa de forma alguma os méritos artísticos, sem os quais não haveria valor a ser apontado. Ao contrário, localiza um caso de feliz exceção, que poderia perfeitamente servir como defesa forte justo da desobrigação dos governos para com a Cultura - pois, se os artistas se viram bem sozinhos, não há necessidade de fomento! Mas, não. Aqui é preciso dizer que se alguns artistas, por força de seu trabalho, mas também, sabe-se lá, por força de alguma milagrosa conjunção, conseguem ter êxito, isso deve ser considerado “apesar dos governos”. São experiências de exceção, e justo porque são faturas artísticas exemplares não deveriam nos desobrigar de apresentar as demandas que precisam ser apresentadas. Deveriam indicar as necessidades que, en fim, definem a regra, ainda que as exceções felizmente estejam aí.

A existência de um edital com investimento direto por parte do governo do Estado é um avanço importantíssimo, mas a irregularidade, o volume de recursos e o guarda-chuva esquisito sob o qual são abrigadas ações com propósitos tão diferentes, salvo engano o colocam no lugar de um instrumento com o qual não se pode contar muito. Além do fato de que são intenções que ficam ao sabor dos ventos e da conjuntura, porque não estão definidas em Lei. Da Prefeitura não temos notícias. Achei que era porque estive muito tempo fora. Mas perguntei a uma multidão, onde está a prefeitura? Infelizmente ninguém sabe, ninguém viu.
Notas:
- O espetáculo Comédia dos erros foi cancelado por causa da chuva e será apresentado no espaço do Cuíra, domingo, às 20h
- Por lapso nosso o primeiro post, do dia 01, saiu incompleto. A versão completa já foi repostada, sugerimos nova leitura

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