segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Terça: Das crianças a Genet

Por Kil Abreu
Fotos: Thiago Araújo
O Último dia do Festival guardaria grandes contrastes – de um espetáculo criado para o público infantil (Carro-Céu) a um outro, inspirado em Jean Genet (Querela-Eu), passando ainda pelo exercício de composição do pessoal da Escola de teatro, Averróis.

Averróis e o exercício do olhar

Sobre este último não nos parece necessário fazer uma análise, dito que está no contexto de trabalho pedagógico. Isso não dispensa, claro, a preocupação artística que está empenhada ali. Pelo contrário, o que há de interessante na inclusão de trabalhos deste gênero em um Festival é justamente o fato de que, pela própria vocação da experiência, o público poder tomar contato com um teatro “em construção”.

No panorama mais geral essa prática, a dos “ensaios” e apontamentos cênicos levados a público, tomou nos últimos anos o lugar de espetáculo propriamente dito. Muitas e importantes companhias (por exemplo, a Cia do Latão de SP, que apresentou vários trabalhos apresentados como ensaios: Ensaio para Danton, Ensaio sobre o latão, etc.) se dedicam a isso, às vezes com fins meramente formalistas, ou seja, como uma variante possível para o olhar do espectador, que passa a ver na obra algo propositalmente inacabado e que pede o complemento intelectual para que venha a ser; às vezes com fins políticos: em um mundo de mercantilização de todos os setores da vida – inclusive do teatro – o artista se recusa ao acabamento, se recusa ao pacto com a estetização final, com a embalagem para o consumo. Prefere, ao invés disso, mostrar o trabalho artístico na sua condição transitória de tentativa, como a fazê-lo sobreviver em um lugar de recusa permanente.

Averróis provavelmente dialoga com essas tendências de uma maneira mais acidental, dado que faz parte de um projeto maior de formação artística, no qual o caráter laboratorial ainda que possa ser uma finalidade (como as citadas), é antes de tudo um meio para tarefas de outra ordem e normalmente ligadas ao processo pedagógico: pesquisa de materiais, construção da personagem, exercícios dramatúrgicos, etc.

O que talvez surja, no caso, como diferencial, é o fato estimulante de o exercício ser apresentado em praça pública – o que revela algumas exigências de ordem técnica importantes para o amadurecimento artístico dos aprendizes: o contato direto com o público, o uso de um espaço com limites bem amplos, onde o trabalho de cada intérprete tem que circular, etc. Ganha a cidade, que vivencia uma espécie de zona nova de realidade, com aqueles seres estranhos retirados de um imaginário mítico, a nos provocar.



Carro-Céu: estímulo ao imaginário dos pequenos
Já havíamos falado antes aqui sobre a influência – muitas vezes assimilada apenas por intuição – das linguagens do clown no teatro brasileiro. A esta, soma-se ainda outra mais antiga, também tomada como base, nem sempre muito consciente, sobretudo no trabalho de atores: a dos tipos de Comédia Dellarte. Como tanto em um caso quanto em outro trata-se de linguagens muito exigentes, que pedem técnicas específicas e treinamento dedicado, nem sempre o volume alcançado na difusão destes meios alcança o correspondente em qualidade expressiva.
Seria injusto dizer que o espetáculo Carro-Céu – que se apropria de elementos deste universo - tem uma expressão totalmente frouxa ou que não encontra nos seus meios a expressão ideal para atingir o público, mas, para começar pelo juízo, podemos dizer que há necessidade de maior empenho na pesquisa das técnicas de atuação e na amarração dramatúrgica delas, enquanto narrativa.

No teatro para crianças e jovens há sempre aquela discussão, às vezes um pouco enfadonha, sobre a qual faixa etária o espetáculo pode se dirigir melhor. Em geral há sempre a disposição para simplificar o problema, dizendo que o bom teatro é para qualquer idade. Sem querer advogar contra o teatro que pode ser visto com prazer por qualquer pessoa, há casos, entretanto, em que os trabalhos francamente parecem funcionar mais especialmente para determinadas faixas da platéia.
Em Carro-céu creio que são os pequenos, as crianças menores, quem aproveitam mais. Assim como na literatura - os primeiros livros são aqueles sem palavras, apenas com uma narrativa de imagens – aqui também é o desenrolar de uma imagem após a outra, no encontro entre os dois personagens, o que movimenta a ação. Esta, por sua vez, desenvolve-se quase ludicamente, naquele sentido bonito da brincadeira mais infantil e sem culpa: o de um jogo cuja finalidade é não ter fim, é o prazer de jogar em si mesmo.


Se em geral o espetáculo alcança bom efeito, parece que ainda há espaço para uma sintonia fina no sentido de fazer equilibrar esta despretensão aparente que as cenas devem ter com um andamento mais rigoroso na relação de causa e efeito entre as ações. Para isso aquele domínio dos meios atorais e dramatúrgicos serão fundamentais. Esta parece ser a área de amadurecimento da EntreAtos.

Querela-Eu: rituais eróticos em montagem inquieta

Confesso a surpresa, ao assistir a esta versão do GITA para o romance de Genet. Fui surpreendido no próprio preconceito, certamente, mas lembrando das incontáveis tentativas a que assisti, de grupos que tentam dar conta de um imaginário tão fascinante, empregado em uma forma de tão difícil transposição como esta, a literatura de Genet.
É que nele, mesmo que nos interessemos pelos lances da “história”, no que elas têm de pitoresco sobretudo no inusitado da visita algo ritualísitca da sexualidade masculina, não é na ordem da fábula ou no primeiro plano dos acontecimentos que mora o fascínio, mas nas dobras do pensamento e da linguagem. Assim como nas traduções, o desafio das versões cênicas é alcançar este algo essencial que está lá, mas que normalmente se perde caso a atenção fique demasiadamente localizada no plano mais superficial, o do enredo.
O mais interessante nesta montagem dirigida por Cesario Augusto e Edson Fernando é a certeza de que no palco há uma outra obra em jogo, além da literária. Esse despudor no tratamento do romance, em que se aproveita apenas algumas passagens julgadas necessárias (então, uma síntese a partir dos pontos- chave) faz da escritura cênica coisa autônoma, que tenta dialogar com aquele essencial da obra inventando em cena uma forma própria para isso.

Fundamental aqui é o elemento físico, corporal, que vai buscar na gestualidade quase (ou efetivamente) coreografada a sua interpretação daquele elemento ritual que está no espírito das ações que o romance narra. Para um universo de paixões desmedidas há esse jogo com ações bem estilizadas, que têm uma beleza quase plástica ao mesmo tempo em que dão o seu depoimento próprio a respeito das aproximações cheias de códigos e pormenores provocantes entre as personagens.
Sem prejuízo ao bom e instigante efeito já conseguido há tarefas sobre as quais ainda será necessário avançar, e que dariam o arredondamento do espetáculo: a performance de Cesario augusto é bem melhor como encenador que como ator. Há ali um problema com a técnica vocal – a fala é por demais internalziada – e há, curiosamente, a necessidade de, para ficar em uma terminologia artaudiana que dialoga de perto com o universo levado à cena – há a necessidade de colocar o corpo do ator na fogueira. O contraste com os dois outros intérpretes, Denis de Oliveira e, especialmente, Juliana Tourinho, é, neste aspecto, muito evidente. Digo “curiosamente” porque é curioso que Cesario dirija com tanta firmeza os parceiros em uma tarefa que ele, como intérprete, não chega a cumprir plenamente.

Por fim, se este crítico fosse diretor (“SE”) arriscaria um palpite – o que em tudo fere a atitude esperada de um crítico: sugeriria que o espetáculo fosse sonorizado, que tivesse uma trilha como mais um elemento expressivo a compor a cena. É claro que dito assim, Isto não passa de uma abstração, pois só as escolhas a respeito do que seria essa trilha contariam efetivamente. Mas isso nos ocorreu durante toda a representação. Talvez pelo fato de que o espetáculo já seja mesmo muito musical, pois há nele uma dedicação grande na área rítmica, só que traduzida fisicamente, no corpo e na gestulidade.
De um modo ou de outro este “Querela-Eu” cumpre mesmo o que o titulo indica: remete a aspectos essenciais de Genet, mas não perde a oportunidade para ser também um depoimento artístico pessoal do grupo, argumentado em um instigante projeto cênico.

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