sábado, 4 de julho de 2009

Quinta, 02: Aproximações da performance e dramaturgias íntimas
Por Kil Abreu
fotos: Thiago Araújo

Segundo dia de caminhada pelos territórios da cena belemense. O percurso guardaria alguns momentos valiosos para reencontros, reais e virtuais, possíveis e impossíveis; e para o apontar de presenças importantes, resgatadas como herança através da representação.

E é este tema, o de certo caminho no modo de representação, o que irmana os três trabalhos aparentemente tão diversos entre si, apresentados na quinta. É que tanto Amor Palhaço (Palhaços trovadores) quanto A Mulher das sete saias (solo de Mariléa Aguiar) e o espetáculo do Cuíra (Quando a sorte te solta um cisne na noite) trazem, cada qual à sua maneira, um diálogo com o universo da performance.


Sem ser, nenhum destes, uma performance, no sentido rigoroso do gênero, há ali pelo menos um elemento performático definitivo: o mundo das vivências pessoais colocado a serviço da cena – o que indica sempre, em alguma medida, um tipo de desvio, de afastamento do teatro “de ficção”, ao tempo em que se aponta certo gosto por uma dramaturgia calcada na experiência viva dos artistas.

Mesmo em Amor Palhaço, em que o elenco mobiliza o seu repertório para dar conta da caracterização, aqui tomada em sentido forte, há já na base do clown uma exigência inegociável: a de que os tipos sejam calcados sobre a fisicalidade e a personalidade reais dos intérpretes, fazendo com que as máscaras, por mais bem definidas que sejam, tragam sempre um depoimento pessoalíssimo e fundamental, vindo do ator. Pode-se até dizer, na lógica de criação em que a linguagem se estrutura, que quanto mais forte a máscara, maior a exposição daquele que está por trás dela.

Neste caminho em direção ao desnudamento os dois espetáculos seguintes avançam para uma experiência cênica em que os intérpretes não apenas quase se desfazem do personagem , como também brincam provocativamente com a possibilidade de uma completa “desficcionalização” do teatro, em favor do relato objetivo e pessoal, que é necessariamente obrigado a procurar a potência poética em outros campos, nos quais a própria idéia de representação está sendo reabordada.





Amor Palhaço - Final feliz no encontro entre o riso e a lírica

A boca da noite na Praça da República daria a primeira gargalhada - sarcástica, diga-se- , antes de os Palhaços trovadores entrarem em cena. Parece que replicando a um gênero que se constrói sobre o impertinente, a natureza cumpriu a sua parte no script e ameaçou chuva. Mas o chuvisco, indo e vindo, não afastou a platéia do anfiteatro, permanecemos firmes. Começando, então, pelo fim: melhor sinal não haveria, a cumplicidade fiel do público.
Tenho que confessar de antemão alguma impaciência com a difusão do clown. Muito impressiona o volume de artistas que passaram, de uns anos para cá, a se dedicar ao repertório, em uma escala de produção e criação que tem hoje lugar de muito destaque, pelo menos em quantidade, Brasil afora. A impaciência, no caso, não é quanto à linguagem, em si, mas com o fato de que, a despeito de certa crença bem disseminada de que apesar da convenção cada clown é único, permanece a sensação de haver uma carência considerável quanto às possibilidades de movimento da linguagem e quanto ao aspecto da originalidade.

Mas o fato é que os Palhaços Trovadores mostraram domínio bem acima da média dos recursos essenciais ao jogo com a platéia, que manteve-se na melhor sintonia com o espetáculo. Por um lado em geral é muito bem contornada a caracterização dos palhaços, em que se desenha as singularidades de comportamento que dão a cor e a dinâmica dos quadros. Por outro o talento para o improviso e, mais que isso, o talento para provocar lances cômicos muito atentos à relação viva com a platéia, naquele espetáculo particular, são as amarras que garantem o efeito quase sempre feliz de comunicação com o público.
Durante a apresentação eu pensava naquelas questões enquanto acompanhava os desalinhos do amor e, entre uma e outra gargalhada, via nas cenas algumas respostas muito estimulantes, ainda que, suponho, não verticalizadas. Para um gênero que se inspira essencialmente no que há de “local”, de genuíno, em cada indivíduo, parece que a conversa com outro tipo de localismo é muito produtiva: as passagens musicais, que amarram a montagem dando a ela uma cor regional, interessam muito. Num plano mais evidente dimensionam as duas forças mais importantes do espetáculo, o efeito cômico e o lirismo; mas também dão a deixa para o que, parece, ainda pode ser explorado e experimentado pelos Palhaços Trovadores: a composição dos personagens em diálogo mais evidente com o contexto cultural. Seria possível uma sintonia fina com isto, sem precisar cair em regionalices? Trata-se de uma impressão, mas inspirada em algo valioso que o espetáculo já tem e que o faz namorar de uma maneira muito bonita aquela originalidade reclamada.

A mulher das sete saias – a melodia da “Primeira voz”

algumas vezes nestes “territórios” pelos quais nós temos andado o artista nos indica algumas portas, mas só nos dá as chaves já na hora da saída, depois do reconhecimento do já vivído. É como um chamado para que compartilhemos, em coletivo, um relato mais pessoal.
É assim também no solo de Mariléa Aguiar em que, ao final, cantamos uma ciranda que diz “essa ciranda não é minha só, é de todos nós”. Isso depois de um trabalho delicado de tirar as saias, uma a uma, num despir-se sincero através do qual os lances da história pessoal vão ganhando, no andamento, a forma do espelho em que certamente também podemos refletir.

No monólogo-relato, que não se dedica a quase nada fora da atriz e desde logo se estrutura em matéria que está colada à pele dela em todas as variações que o espetáculo vai apresentando, usa-se uma estratégia engenhosa para fugir do ensimesmamento. A narrativa, pessoal que seja, chega a nós dimensionada por alguns poucos, mas potentes artifícios, que resgatam aquele depoimento do solipsismo narcísico e nos comprometem, a nós também, nos chamam a alguma possibilidade de fabulação a partir daquele mundo em princípio tão auto-centrado: a finalização musicada, já citada, mas, sobretudo, a leitura breve de sete cartas do Tarô, que pontuam cada passagem. Ali o que é o sujeito da atriz inspira e projeta poeticamente os outros sujeitos, na platéia. E a cena permanece viva, acesa por essas diversas presenças.
Para além do efeito terno, anti-espetacular e anti-dramático por opção, o trabalho se articula, então, nesta zona de fronteira entre a história íntima e o desejo de interlocução, de compartilhamento coletivo. Diria-nos Jean-Pierre Sarrazac que este é um tipo de resposta, muitas vezes não planejada, para uma época de crescente individuação da vida, de quebra dos vínculos e de medo. Mas que tem – como aqui – vocação para samplear, no individual, um sentimento que é comum, que a partir de uma subjetividade nos reúne a todos, nos alinha naquilo que Raymond Williams chamou “estruturas de sentimento” – forças que não estão no primeiro plano do discurso, que são subliminares mas que fazem revelar, mesmo na experiência mais subjetiva, as intuições de um grupo, de uma geração, de uma comunidade. Parece-nos que com algum esforço é possível ler assim – como se leria um poema simples e fundo de Adélia Prado – o poema-em-cena de Mariléa Aguiar, que neste momento toma para si o lugar de “primeira voz”, sabendo que ela não está sozinha, que há outros na assistência.

Quando a sorte te solta um cisne na noite – dialética “queer”entre a dor e o prazer

Ontem eu falava da necessidade de um diálogo produtivo com os nossos mortos, usando de empréstimo uma imagem de Heiner Muller. Jamais intuí uma resposta tão imediata e forte quanto esta que o Cuíra nos dá. Mesmo que não tenha sido pensado neste eixo, por ação infeliz do destino o espetáculo mantém um diálogo cerrado com alguns artistas paraenses que nos deixaram recentemente.
Naquela chave de um teatro que se aproxima da performance o mais notável é o caráter quase documental, definitivamente calcado no chão da vida, que o espetáculo expõe. Pelo que temos notícia a dramaturgia de Edyr Augusto foi consumida e transformada pelo elenco e direção a partir das percepções íntimas, que geraram o material que, enfim, foi à cena. Se tomarmos como referência a história recente do teatro mais instigante feito no Brasil (normalmente ligado à produção de grupos) nesta operação só há méritos. O descentramento do texto (visto como coisa literária) em favor de uma dramaturgia espetacular, neste trabalho do dramaturgo que está a serviço não do texto como criação individual e imexível, mas do espetáculo como coisa coletiva e em movimento, é o que tem gerado as formas mais originais do panorama atual – como acontece com o trabalho do Cuíra.

Ali, sem que precisemos saber dos procedimentos que resultaram na montagem, é possível ver que a colaboração variada gerou uma forma necessária e, para ficar em um tema do espetáculo, “assumida” como tal, no que ela tem de propositalmente fraturada, aberta, incompleta. Tomando como base uma estrutura de fragmentos, o espetáculo se organiza não nas coordenadas de uma fábula, no sentido aristotélico, mas de um conjunto de quadros em que tão importante quanto os depoimentos, vistos no recorte, é o espírito marcante de uma dialética em que são organizadas situações que vão do drama fundo à alegria lúdica, gratuita, quase infantil.

Deliberadamente despreocupado com os filtros da ficção o espetáculo se expõe em sol pleno: ora se inspira diretamente nos acontecimentos da vida ordinária, roçando sem culpa o panfletário; ora se apóia em um imaginário gay característico, idealizado mas típico, traduzido em formas rituais (culto e modificação do corpo) e em fantasias explicitamente “queer”, cerimoniais (desfile de moda, coreografia de boate), em que se brinca e se joga com a as dobras flexíveis da sexualidade e, portanto, com a identidade.

Cada um daqueles artistas citados e que já não estão conosco têm aparições decisivas, mas são tomados pelas mãos sem nostalgia. Ronald Bergman tem certamente suas marcas escritas nos lugares mais graves da encenação, dono de espírito indomável, posto a colaborar no processo. Valter Bandeira arredonda o tema da peça já ao final com o que nele era o melhor enquanto artista, a voz. E, por fim, e talvez de maneira definitiva, há a herança estética e de pensamento de Luis Otávio Barata, posta em movimento com inteligência e autonomia por uma das suas mais talentosas parceiras, Wlad Lima, na companhia de Karine Jansen.
Neste capítulo, quem acompanhou a cena conturbada e cheia de razões do grupo Cena Aberta na Belém dos anos 80 sabe como o espetáculo se dedica, por exemplo, a ver o corpo como eixo narrativo. Em um diálogo subliminar com Artaud e Genet, não é outra a fonte mais preciosa da teatralidade que a montagem faz ver. Mais que um discurso sobre as causas gays (ainda que este também esteja na peça), é o significado de presença do corpo o que viabiliza a força e o sentido da montagem. É na gestualidade agressiva, nas imagens “desviadas”, às vezes assustadoras, imorais e fascinantes, que o espetáculo se diz melhor. Um espetáculo, então, em que a questão do ser, nas dimensões possíveis que ela projeta (social, subjetiva), aparece escrita segunda aquela “posição pela carne” da qual o Luis Otávio falava e que é retomada belamente, com o belo elenco de jovens atores que colocam seus “cavalos” ali em posição de combate.



















Um comentário:

  1. eu gosto de falar de tristeza, eu comparo com saudade, ela chega devagar e vai espalhando seu perfume de jasmim pelas coisas até que todas ficam impregnadas pela beleza que ela tem. O Território me fez vizitar lugares q no espaço físico não estão mais lá, mas que com tristeza,saudade e amor revisitei descobrindo novos e muito queridos.Fui fechando janelas, abrindo portas e senti um chiero muito bom no ar.Tenho certeza que deste Território vai sair muito pano pra manga. Com carinho da Blá.

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