quinta-feira, 9 de julho de 2009

Domingo: andanças e cortejos pelos territórios da cidade

Por Kil Abreu
Fotos Thiago Araújo
O domingo foi dia de ampliar o alcance do teatro nos territórios da cidade. Formatos e propósitos diversos se unificaram sob a direção de um mesmo olhar: para o lado de fora do edifício convencional e procurando o contato mais direto com a comunidade, na rua, na Praça. Mesmo quando apresentado no espaço da Sala (Comédia dos erros, no Cuíra), foi mais por adequação da programação que por vocação do trabalho, também pensado para estar do lado de fora.
Este dia sintetiza, então, o recorte do Festival, na sua intenção de criar zonas de encontro decididamente mais francas com a população. Este “conceito”se alinha a uma parte importante e considerável da produção brasileira, preocupada em resgatar o lugar social do teatro - não apenas no sentido de um “teatro social”, strictu sensu, mas de um teatro de aproximação deliberada com a sociedade. Basta olhar o que anda fazendo, por exemplo, um grupo referencial como o Galpão, de Minas, que recém-estreou “Till, Eulenspiegel” retornando ao seu berço e escola: a rua. Antes este movimento já havia sido ensaiado em outro espetáculo, “Pequenos milagres”, que embora pensado para a sala fechada, baseava sua dramaturgia em depoimentos recebidos por carta, vindos de gente comum e de vários lugares do país.
Nessa mesma perspectiva encontram-se outros grupos – desde os que já se dedicam ao teatro de rua há muito tempo, como o Oigalê (de Porto Alegre), até outros, que experimentam ousadas intervenções na cidade, como o Teatro da Vertigem, que fez do degradado rio Tietê, em São Paulo, o palco para um espetáculo “navegante”, um painel épico sobre o Brasil, em “Br-3”. Estes grupos, assim como os daqui, parecem intuir, em um agudo senso de sobrevivência, que as questões de ordem estética não podem ignorar a necessidade deste contato mais direto com as platéias. E então se reinventam, pelas necessidades e tarefas que o espaço aberto coloca. Voltaremos ao tema na avaliação final do Festival.

Buchudos e Natureza no asfalto: a nostalgia alegre do popular e três variações do teatro “mínimo”
Antes de começar um outro acontecimento obviamente não pautado no Festival, mas também de muita teatralidade – o Arraial do Pavulagem-, duas intervenções peculiares ganharam a Praça da República, através do Grupo de teatro da Unama, que mostrou um exercício a partir de alguns personagens do Boi de máscaras de São Caetano de Odivelas, os “buchudos”; e a In Bust, que apresentou em suas caixas de lambe-lambe “Natureza no asfalto”.
O Buchudo, pelo que percebemos, é um tipo de mascarado de quem não se espera mais que o jogo livre e lúdico com o meio e com as pessoas, em uma amostragem do que seria uma espécie de teatralidade original, no sentido da origem. Uma teatralidade primeira, em que as convenções são relativamente libertas de formalismo e se baseiam na atitude humorada, simples, e na provocação gratuita, pelo uso da máscara e da indumentária.

A tomar o representado, dos buchudos não se espera nem mesmo aquele apelo narrativo da cultura popular tradicional, estilizado na idéia de “enredo” dos carnavais modernos. Eles parecem surgir de uma manifestação carnavalesca espontânea, ainda não hierarquizada, em que objetivo é provocar a empatia por meio do estranhamento alegre que acontece com a caracterização do brincante. Provavelmente tem neste seu acontecer quase ingênuo a função de promover a liga, o vínculo comunitário. Talvez se possa dizer que o interesse por este tipo de manifestação reproduzido na pesquisa do pessoal da Unama, é tributário de certa nostalgia em relação a estas origens. Para nós, homens informados por um imaginário urbano, estas escolhas, às vezes mais, às vezes menos idealizadas, tematizam o lugar de uma falta, de um tipo de vínculo quase sempre já perdido entre nós, que a re-apresentação de caracteres como os “buchudos” vêm nos lembrar, em uma espécie de consolar festivo, terno, ao qual aderimos de imediato, quase que afetivamente.


Natureza no Asfalto
Já em “Natureza no asfalto” a imagem das três filas indianas formadas pela platéia da In Bust no meio da Praça era algo notável. Os espectadores, tomados um a um, esperavam a sua vez para assistir a um teatro em tudo curioso (pelo formato, mas, também, pelas circunstâncias, o entorno). A caixa de “lambe-lambe” e, dentro delas, as três narrativas brevíssimas e miniaturizadas, eram na verdade um convite radical para o anti-espetacular, em uma época na qual a espetacularização do cotidiano nos mostra uma galeria infinita de variações, da política ao mundo da vida privada exibido nos BBbs, Fazendas e variantes.

É como se o teatro, aqui renovado em tamanho à sua forma mínima, precisasse se dissociar de concorrência desleal, mais visível e espalhafatosa, para recuperar, por contraste, o interesse. E são, de fato, muito interessantes mais estas peças que o grupo tira do seu baú de espantos, como diria Mário Quintana. É claro, não se trata apenas de uma estratégia de visibilidade, que teria o seu trunfo no chamado poderoso das caixinhas misteriosas.

Os quadros que trazem um passarinho baleado e ressuscitado como flor, um gato que se acidenta tentando alcançar um pássaro e depois é salvo por ele, e o troco dado pela natureza a um madeireiro devastador, são historietas que para além dos seus significados imediatos assumem um compromisso ético, de relação com o espectador, convidado particularmente para aquela sessão. O território do teatro, até então aparentemente reduzidíssimo, ganha assim uma perspectiva ampla, de interação e proximidade com o espectador.



No olho da rua: a ciranda rodava no meio do mundo

O espetáculo da Cia. brasileira de cortejos é uma destas experiências em que os territórios da representação vão ser investigados nas suas fronteiras. Mas isso caracteriza o trabalho de uma maneira ainda genérica, quanto ao panorama mais amplo, em que outros grupos se dedicam aos cruzamentos de suportes, tradições teatrais e linguagens, e também quanto à própria pré-história da Companhia (a Atores contemporâneos), de onde deriva um longo percurso artístico em que uma parte da teatralidade já estava plantada.
Até onde podemos ver as linhas de continuidade e as novas perspectivas, “No Olho da rua” preserva um eixo de pesquisa definido sobretudo por uma variação do teatro físico, ou “do movimento”, pouco interessado em aristotelismos de qualquer ordem e dedicado a investigar a expressão teatral segundo as possibilidades de uma narrativa do corpo, com seus apoios e deslocamentos próprios. Narrativas não fabulares, mas marcadas por uma tensão cênica muito contundente na abordagem dos temas de cada espetáculo, em que, na relação com as platéias, se intuía mais os “estados” dramáticos que os sentidos exemplares, redondos.
Agora empenhada em assumir, na rua, a herança do repertório cultural como tema e o contato direto com a cidade como estratégia, a trupe de Miguel Santabrígida sai batendo às portas e abrindo os caminhos para o desfile de um teatro que alude poeticamente a uma herança cultural, a nossa própria, especialmente no intercâmbio com um duplo que entre nós ganhou feições originais e definitivas: o do sagrado e do profano, do imaginário religioso e das festas pagãs, amalgamados no espetáculo na forma de um acontecimento cênico articulado com a delicadeza e com a sofisticação necessárias para realocar estas matrizes não como oposições, mas como pares indissolúveis da nossa sociabilidade.
Se a matéria é esta, resta localizar o seu espaço de acontecimento, que vai emprestar uma via a mais de significado ao espetáculo. Faz muito sentido que ele esteja na cidade velha, onde a coleção de canções e poemas que se referem às coisas da vida ordinária ganha o tablado ideal para evoluir os lances de memória, que mesmo tratados em chave quase abstrata irmanam a representação e a recepção, artistas e platéia, em um espaço a um só tempo múltiplo e comum.
A encenação de Miguel Santabrígida guarda ainda, felizmente, o rigor formal e o desejo de uma linguagem autônoma, que coloca o espetáculo longe de um tipo de teatro que, ao se apropriar do popular, acredita poder se diluir nele, em nome de certa idéia de autenticidade. Aqui, bem ao contrário, há o equilíbrio seguro entre a visita às fontes e o tratamento estético rigoroso, sem o qual não teríamos como definir os recortes firmes que fazem da montagem um depoimento artístico ao mesmo tempo disciplinado e comovente, do teatro para a sua cidade.


Comédia dos erros: espelhar os palcos e ver suas medidas

Não me pareceu que a montagem do Nós Outros foi totalmente exitosa no palco do Cuíra. E ocorre que ela seria apresentada no anfi-teatro da Praça. Foi cancelada por causa da chuva. Essa observação pode parecer acidental, mas proponho começar por aí.
A herança barroca que sobrevive em Shakespeare, traduzida nas mesmas situações especulares que estarão depois em uma peça grave como Hamlet, já se definem aqui, só que em forma de comédia. O assunto da identidade (Ser ou não ser?) era uma preocupação enraizada profundamente no coração da época, passagem de uma consciência teológica quase absoluta para um humanismo que se expandia e prometia nos transformar no que somos. Não interessa muito discutir estas motivações no contexto da cena elisabetana, mas a nós é importante saber, tomando simbolicamente a deixa do bardo, que a representação, do ponto de vista dramatúrgico, não prescinde da identidade do espaço. Diferentes espaços não geram efeitos iguais.

Sabemos que foi uma contingência, que para que o espetáculo pudesse acontecer foi preciso transferi-lo da rua para a sala fechada, mas não podemos ignorar que a relação com a platéia provavelmente mudou, como era de se esperar. É que se por um lado a dramaturgia carrega muito dos sentidos do representado, especialmente aqui, em um texto calcado no verbo, por outro o espaço define muito a eficiência da dramaturgia. Por isso montagens pensadas “para qualquer lugar” dificilmente se adaptam de fato igualmente bem em qualquer lugar. E supomos que isto tem a ver com a sustentação um pouco frouxa do ritmo do espetáculo, ao menos nesta apresentação. Porque no seu desenho, tanto no gestual quanto na marcação, há claramente um traçado firme que, no entanto, não encontrou os seus tempos ideais.

É curioso porque em princípio não faltam os elementos para o êxito da cena. Se considerarmos uma montagem tratada de forma relativamente tradicional, como é o caso, estão lá: um grupo de atores empenhados, uma direção segura, acabamento visual caprichado e coerente e até o luxo supremo de músicos que executam a trilha ao vivo. Se o espetáculo não acontece plenamente, ou concordamos com aquela hipótese ou teremos que concordar com um ditado, do qual se valiam alguns críticos antigos mais jocosos: como na cozinha, no teatro nem sempre os ingredientes aparentemente certos resultam em algo totalmente acertado.
Ficarei na vontade de assistir ao espetáculo na rua.

2 comentários:

  1. Caro Kil,

    A Comédia dos Erros não mais será apresentada. Encerramos a trajetória deste espetáculo no Cuíra, lamentando muito e profundamente que não tenha sido na praça, por todos os motivos e blá-blá-blá.
    Reconheço as questões apontadas de elenco, direção e ritmo, mas esperava um pouco mais. Ou não se tem o que dizer (e isso gera em mim especulações assombrosas), ou não se quis/pôde dizer (o que me apavora ainda mais!).
    Gostaria muito de esmiuçar isso, por aqui, por qualquer outro caminho.
    E aproveito para deixar o meu endereço, onde também me pavoneio não de crítico, mas de comentarista. Muito me agradaria tua visita e, se possível, comentários: http://curiadarte.blogspot.com/
    Abraços!

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  2. Oi, Hudson. Pois é, às vezes o crítico precisa se contentar com os seus próprios limites. Provavlmente eu não vejo o horizonte de questões que o espetáculo levanta e que eu não enxergo. Então francamente há este limite, eu não tenho muito o que dizer. E você? Este espaço é ótimo para o argumento. Vai aí.
    Um abraço
    Kil

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